sexta-feira, 2 de julho de 2010

Cruz e Sousa - Parte I




Provavelmente, qualquer pessoa que já tenha passado pelo Ensino Médio e por boas aulas de literatura já deve ter, ao menos, lido algo de Cruz e Souza. E, evidentemente, confrontado-se com algumas das dificuldades enfrentadas pelo principal representante da poesia simbolista no Brasil.
Fugiremos, porém, das didáticas -às vezes falhas - e partiremos para análises com base em algumas obras de Cruz e Sousa, e de análises feitas por especialistas na poética Cruziana, como Ivone Daré Rabello (o livro em questão utilizado é Um Canto à Margem - Uma Leitura da Poética de Cruz e Sousa; São Paulo, Nankin/Edusp. 2006). Utilizar-se-á a introdução de Ivan Teixeira à edição Fac-similar de Faróis (Ateliê Editorial/FCC Edições, São Paulo. 1998), e também a Introdução de Ivone Daré Rabello à Antologia Poética - Cruz e Sousa (Ática, São Paulo. 2006).


João da Cruz e Sousa, filho de escravos - sendo que a mãe já havia sido alforriada -, teve grande sorte em sua infância de ter tido a educação tutelada dos senhores de seus pais, que não tinham filhos, e decidiram educar o então garoto João da Cruz com os moldes duma educação branca clássica. Acredita-se que o "Sousa" do nome de Cruz e Sousa foi incluído naturalmente, pois tal sobrenome pertencia aos senhores brancos que o educaram.

Durante a educação de Cruz e Sousa, surgiu uma lenda sobre o então jovem negro (como quase é inevitável no mundo poético a criação de ilusões, como, por exemplo, no Romantismo Brasileiro, da não sabida, porém ,não desmentida, castidade de Álvares de Azevedo). Perambulavam naquela época as taciturnas ideias deterministas das raças, que defendiam inexoravelmente que os negros eram inferiores intelectualmente - e para eles restavam o trabalho braçal. Um emérito professor alemão, Fritz Müller, que estava no Brasil em estudos, lecionou no colégio Ateneu Provincial Catarinense. Em uma de suas cartas, citou um brilhante aluno negro, que ia de encontro com as ideias deterministas das raças. Por muito tempo, acreditou-se, ou somente se deu crédito, de que Cruz e Sousa era o tal aluno citado. Sabe-se, porém, que Müller não foi professor do futuro poeta. (RABELLO, Ática, 2006).

Cruz e Sousa, já em sua fase de maturidade poética, enfrentou oposições da crítica e da própria sociedade. O crítico implacável, e por vezes injusto, José Veríssimo de modo algum concordava com a temática Simbolista. A questão de Veríssimo não parece transcender o gosto poético, visto que ele, após o falecimento de Cruz e Sousa, e dos esforços de Nestor Vítor para que a obra Cruziana fosse revista, reconheceu a questão do "negro bom e sofrido", porém com falhas culturais. (RABELLO, Edusp, 2006). A sociedade alfabetizada sentia-se incomodada com um negro puro, por mais eloquência e boa cultura que tivesse, exercendo, ou tentando, papéis culturais na alta sociedade. Simples datas nos ajudarão para compreender o porquê.

Como bem sabemos, a escravidão foi abolida no Brasil pela Lei Áurea no ano de 1888. Porém, sabe-se que a sociedade vivia em torno duma mentalidade escravocrata, cujo cárcere social, como bem vemos nas demonstrações de racismo hoje em dia, ainda não foi totalmente destruído. Exemplos claros de como a sociedade vivia em torno da escravidão, e que libertar-se da mentalidade escravista - que no contexto brasileiro continha predominantemente negros - não era simples, são, por exemplo, A Revolta dos Malês - que mesmo sendo feita por escravos - tinha caráter escravista. Não havia, para muitas pessoas na época, outro modo de trabalho senão o do regime escravocrata.

Os únicos livros de Cruz e Sousa publicados em vida, ambos em 1893, Missais (poemas em prosa), e Broquéis. Ambos os livros com uma marca de influência latente de Baudeleire (o poema de abertura de Broquéis - "Antífona" - tem como epígrafe versos do francês), que sendo um poeta decadista, defensor do artista na ambiguidade da palavra bizarro (digno de admiração, na forma culta; excêntrico, estranho, no informal), causava certo descorforto aos requintes da sociedade da época.

Note-se que os livros foram editados 5 anos depois de abolida a escravidão. Obviamente, além das dificuldades que o próprio estilo Simbolista encontrou no país, a poesia Cruziana sofreu, e o seu autor, inevitavelmente sofreram com a questão da mentalidade determinista e com os tenebrosos rastros, muito vivos ainda, da escravidão.

O Simbolismo, como movimento literário, demorou a ser compreendido - e até hoje não é, de modo algum, um estilo popular, nem entre as rodas literárias de novos poetas. A poética Cruziana, segundo Ivan Teixeira, não poderia ser somente ligada à temática Simbolista, pois tinha um teor metafísico. Em Faróis, nota-se esse aspecto, numa tentativa de "investigação existencial do indivíduo". (TEIXEIRA, Ateliê,1998). Entender-se-ia tais coisas... uma análise da alma, em versos de dores, de símbolos abismosos, taciturnos, lascivos, e, por vezes, satânicos, quando a República, proclamada em 1889, dava sinais de prematura fragilidade? O próprio movimento Parnasiano, que tinha maior destaque e prestígio, tinha certa função na fixação duma República. Olavo Bilac, o maior Parnasiano brasileiro, foi um dos apoiadores e propagadores da ideia do exército obrigatório.

A poética Cruziana foi redescoberta na década de 1940, pelo francês Roger Bastide, que no intento de buscar uma poesia afro-brasileira, foi ao encontro da poesia de Cruz e Sousa. A sua análise, em Quatro Estudos sobre Cruz e Sousa, talvez foi a primeira que deu valor ao simbolismo Cruziano e, principalmente, colocou a poesia acima do homem-poeta. Ou seja, deixou a dolência do viver de João da Cruz e Sousa em segundo plano, e analisou-se, finalmente, a poesia, tão-somente.

O itálico em poesia afro-brasileira não foi à toa. Encerro esta longa primeira parte de uma despretensiosa análise sobre Cruz e Sousa e sua época com o mesmo trecho que Ivan Teixeira, na apresentação do fac-similar de Faróis, usou para demonstrar o que Cruz e Sousa considerava o fado de um poeta afro-brasileiro. Tal trecho é de "Emparedado", em Evocações.

“Artista! Pode lá isso ser se tu és d'África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venoso da Angústia!”.

Encerrada está aqui a primeira parte.

Abraços, Cardoso Tardelli. 02/07/2010

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