quinta-feira, 16 de junho de 2011

"A Lira dos Vinte Anos", de Álvares de Azevedo - Uma Leitura Pessoal


Caros leitores de O Sacrário das Plangências, cá está uma postagem que, provavelmente, levar-nos-á à uma conclusão teoricamente evidente sobre uma obra das mais célebres de nossa literatura - por mais que tenha a oposição por desconhecimento de muitas pessoas.

Não me aprofundarei na "história da obra", somente falarei o que nesse momento é importante. Depois da frustrada tentativa de lançar, conjuntamente com Aureliano Lessa (1828-1861) e Bernardo Guimarães (1825-1884), seus colegas da Academia de Direito do Largo de São Francisco, um livro intitulado As Três Liras, Álvares de Azevedo (1831-1852) planejou, com os poemas que tinha em mãos, a Lira dos Vinte Anos, dividida, já tinha na ocasião de seu lançamento, nas três partes que serão aqui trabalhadas. Mas sabemos que alguns cantos foram adicionados à obra e ao contexto de cada parte, além do prefácio do livro completo, que foi omitido na primeira edição.

Álvares de Azevedo, na visualização pessoal de sua obra, fez a divisão citada, tendo como consequência um resumo da Lira em temáticas supostas: platônica/irônica/platônica. Nomeando-as Azevedo de Ariel e Caliban (sendo Ariel a primeira e terceira partes e Caliban a segunda), numa influência clara de A Tempestade, de Shakespeare, Álvares de Azevedo deixava a interpretação do leitor tendenciada a essa divisão citada.

(Foto: Álvares de Azevedo com 17 anos)

Se procurarmos informações em livros didáticos ou em sites sobre a Lira de Azevedo, veríamos que essa divisão seria, no geral, reforçada por alguns detalhes e poemas, inclusive, em muitas vezes, classificando Azevedo como um escritor gótico por citar, vez ou outra, cemitérios em sua poesia, tal qual muitos poetas já o fizeram. Mas será que o representante maior de toda uma geração de escritores, idolatrado pelos poetas da época mais respeitados atualmente, como é o caso de Castro Alves (1847-1871), não tem algo para além do feitio mórbido que lhe dão?
Das três partes, pegarei trechos de poemas que, talvez, sejam citados em tais questões, mas que reforçam muito a divisória feita por Azevedo:




PARTE I

V

Quando falo contigo, no meu peito
Esquece-me esta dor que me consome:
Talvez corre o prazer nas fibras d'alma
E ouso ainda murmurar teu nome!

Que existência, mulher! se tu souberas
A dor de coração do teu amante,
E os ais que pela noite, no silêncio,
Arquejam no seu peito delirante!

E quando sofre e padeceu, e a febre
Como seus lábios desbotou na vida,
E sua alma cansou na dor convulsa
E adormeceu na cinza consumida!

Talvez terias dó da mágoa insana
Que minh'alma votou ao desalento,
E consentiria a virgem dos amores
Descansar-me no seio um só momento!

Sou um doudo talvez de assim amar-te,
De murchar minha vida no delírio...
Se nos sonhos de amor nunca tremeste
Sonhando meu amor e meu martírio!

(...)

PARTE II

Um Cadáver de Poeta

(...)

E quem era Camões? Por ter perdido
Um olho na batalha e ser valente,
As esmolas valeu. Mas quanto ao resto,
Por fazer umas trovas de vadio,
Deveriam lhe dar, além da glória
- E essa deram-lhe à farta - algum bispado,
Alguma dessas gordas sinecuras
Que se davam a idiotas fidalguias?

Sinecura: Emprego no qual não é preciso praticamente se trabalhar.

PARTE III

Por Mim?

Teus negros olhos uma vez fitando
Senti que luz mais branda os acendia,
Pálida de langor, eu vi-te olhando -
Mulher do meu amor, meu serafim,
Esse amor que em teus olhos refletia...
Talvez! - era por mim?

(...)

Julguei necessário colocar uma parte do longo poema V, de uma série amplamente platônica da primeira parte da obra, pois as imagens clássicas ao platonismo e à agonia do sujeito-lírico são dadas pouco a pouco - na verdade, até mesmo nas epígrafes de Dante, Gautier e Almeida Freitas, as quais preferi não colocar para não ocupar um espaço desnecessário. Ou seja, o poema, em suas imagens, representa um "cântico de resignação", confirmadas nas estrofes derradeiras com os versos:

Adeus, anjo de amor! tu não mentiste!
Foi minha essa ilusão, e o sonho ardente:
Sinto que morrerei... tu, dorme e sonha
No amor dos anjos, pálida inocente!
(...)

O grande ponto a se colocar é que a tão louvada percepção de morte, uma das coisas que mais aprendemos sobre Álvares de Azevedo em Escolas, é evidente como não poderia deixar de ser. Sempre teve ele uma saúde frágil - evidenciada logo depois da perda da irmã, quando Maneco tinha três anos, causando-lhe uma grave doença. Além das mortes de alguns de seus companheiros de faculdade (como João Batista da Silva Pereira Júnior, para o qual Azevedo dedicou um poema como epígrafe), fizeram que a morte sempre estivesse presente, não somente na obra, mas perambulando em sua vida como um vulto incansável.

A moda Byroniana nas obras da época era evidente, mas limitá-la a toda obra de Álvares de Azevedo soa como uma teimosa tese de "plagiador brasileiro" (até mesmo Péricles Eugênio da Silva Ramos escreveu que na segunda parte do livro é a parte em que as evidências de "cópia" ficam mais claras, principalmente na comédia Boêmios, cuja semelhança a uma obra de Byron fulge). Teimam em mostrar o pequeno trecho de uma carta José de Alencar, na qual o autor de "O Guarani" diz que "não havia um moço que não quisesse parecer com Byron naquele momento". Repito: a influência de Byron, tal qual a de Victor Hugo, Musset, Goethe, Shelley, enfim, do movimento Romântico europeu, além da Poesia Clássica, era obrigatória aos poetas de bom nível. Keats, Romântico inglês da segunda geração, inclinava-se mais para a cultura clássica do que para as influências contemporâneas de seu tempo, sendo uma influência aos nossos Românticos de extrema serventia.
Diante disso, volto-me aos versos citados da parte segunda da obra.

Pouco se comenta do Álvares de Azevedo irônico, de uma mórbida genialidade com o riso desgostoso (como em certos contos de Noite na Taverna podemos atestar). Mas, acima de tudo, Maneco era um questionador. Digo-o pois em vários pontos da segunda parte há divagações versadas, muitas com a tópica do tratamento que se devia dar à poesia, ao dinheiro, aos membros da igreja e aos Poetas - estes, aliás, nas ironias teatrais de Azevedo, tinham o tratamento de um ser que nasceu para ser esquecido.

Nesses versos, além da já citada Cultura Clássica, atesta-se o que disse:

E quem era Camões? Por ter perdido
Um olho na batalha e ser valente,
As esmolas valeu.
(...)

Soa, inclusive, curioso o fato de Álvares de Azevedo dar tamanha importância ao dinheiro, tendo um canto ambíguo em homenagem, sendo um elogio crítico:

DINHEIRO

(...)*

Sem ele não há cova - quem enterra
Assim grátis - a deo? - O batizado
Também custa dinheiro. Quem namora
Sem pagar as pratinhas ao Mercúrio?
Demais, as Danais também o adoram.
Quem imprime seus versos, quem passeia,
Quem sobe a Deputado, até Ministro,
Quem é mesmo Eleitor, embora sábio,
Embora gênio, talentosa fronte,
Alma Romana, se não tem dinheiro?
Fora a canalha de vazios bolsos!
O mundo é para todos... Certamente,
Assim o disse Deus - mas esse texto
Explica-se melhor e doutro modo.
Houve um erro de imprensa no Evangelho:
O mundo é um festim - concordo nisso,
Mas não entra ninguém sem ter as louras.

*Foi retirada a longa epígrafe, em francês, de Chateaubriand.

Que fique como curiosidade que outro poeta da chamada segunda geração do Romantismo Brasileiro também expunha críticas sociais: Casimiro de Abreu (1839-1860), que em muitas vezes tinha um tom crítico à sociedade que se formava na época, sendo que Mário Alves de Oliveira, organizador da edição de das suas Obras Completas mais recente, chegou a cogitar que, se Casimiro vivesse nos atuais dias, seria, provavelmente, um poeta engajado socialmente.

Ainda sobre a questão financeira que é tratada por Álvares de Azevedo, em cartas para a sua mãe, sempre o poeta sentia-se incomodado com o alto custo de vida que se tinha numa cidade que pouco tinha a lhe oferecer, mas que estava num movimento de aumento de custo por consequência da vinda de alunos para a Academia de Direito do Largo de São Francisco, atual Faculdade de Direito da USP. Então as dificuldades financeiras e sociais de Azevedo, que nunca demonstrou grande deleite de estar no pequeno, mas agitado meio acadêmico paulistano, eram transcritas por meio de queixosas cartas e por meio de seus poemas. (Arcadas: Largo de São Francisco - História da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ana Luíza Martins e Heloísa Barbuy. Melhoramentos, São Paulo. 1999). Não obstante, Álvares de Azevedo, segundo Ubiratan Machado - em seu A Vida Literária no Brasil durante o Romantismo -, provavelmente tinha ligações com a Maçonaria (assim como vários outros poetas), pendendo também à um lado de certo "fraternalismo-de-capital", como é típico dessa Instituição.

Passando para a última parte do livro, devo adiantar que, mesmo tendo as partes primeira e terceira o "mesmo nome", tratá-las igualmente pode nos levar a um caminho de falácia literária, porque na última ainda há o que se tratar numa essencial diferenciação.
Talvez, creio, uma das coisas que mais tenham chamado a atenção é a "Fixação na Imagem dos Olhos", que é uma imagem tipicamente utilizada em tópicas relativas à sedução, lascividade, como a literatura provaria na poética de Cruz e Sousa, Alphunsus de Guimaraens e, num geral, de todo Simbolismo (olhos como a vaga imagem de um todo). Se na primeira parte do livro a imagem das mãos, símbolo também de sensualidade, era amplamente utilizado, na derradeira parte o uso dos olhos era utilizado de várias maneiras. Desde uma redenção, até numa esperança (que não se concretizaria no final do poema), como vemos aqui:

Teus negros olhos uma vez fitando
Senti que luz mais branda os acendia,
(...)

Mas, em um dos Sonetos mais célebres dele, o ponto da "Fixação na Imagem dos Olhos" e o tratamento que é dado para a palavra "Olhos" durante o poema, sendo ele repetido algumas vezes na estrutura de tercetos (algo que seria condenado na poética Simbolista), dá-nos uma impressão de quão foi ousado e, ao mesmo tempo, bem-sucedido o soneto a seguir:

SONETO

Já da morte o palor me cobre o rosto,
Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!

Do leito embalde no macio encosto
Tento o sono reter!... já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece...
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!

O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade.

Dá-me esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!

No caso desse poema, que já continha o enjambement que seria típico dos Parnasianos e Simbolistas no verso primeiro do segundo quarteto, além do já citado uso repetido da mesma palavra em plural ("Olhos"), o que fez com que o soneto ganhasse uma musicalidade majestosa, vemos um Álvares de Azevedo sendo estéticamente ousado. E são poemas assim que, aliás, ficaram de fonte para o Simbolismo, movimento que é considerado pós-romântico.

E ainda no ponto do Álvares de Azevedo ousado e inovador, mas voltando à segunda parte do livro, mostro-lhes um poema que é certamente conhecido por alguns, o Ideias Íntimas, mostra uma abundante descrição do quarto em que vivia Maneco, algo totalmente novo na poesia brasileira:

IDEIAS ÍNTIMAS

(...)

XI

Junto do leito meus poetas dormem
- O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron -
Na mesa confundidos. Junto deles
Meu velho candeeiro se espreguiça
E parece pedir formatura.
(...)
XIII

(...)

Vem, fogoso Cognac! É só contigo
Que sinto-me viver. Inda palpito,
Quando os eflúvios dessas gotas áureas
Filtram no sangue meu correndo a vida,
Vibram-me os nervos e as artérias queimam,
Os meus olhos ardentes se escurecem
E no cérebro passam delirosos
Assomos de poesia... Dentre a sombra
Vejo num leito d'oiro a imagem dela
Palpitante, que dorme e que suspira,
Que seus braços me estende...
Eu me esquecia:
Faz-se a noite; traz fogo e dous charutos
E na mesa do estudo acende a lâmpada...

No trecho posto está mais que claro que não se trata de uma descrição à lá parnasianos, em seus momentos de puro descritivismo poético. Mas sem o passo da clarividência do ambiente que Álvares de Azevedo nos mostrou, poemas como o Vaso Grego, de Alberto de Oliveira (1857-1937) - um dos mais conhecidos da escola, mas que passa longe de ser um dos melhores do autor ou do parnasianismo brasileiro -, provavelmente não teriam sido recebidos com tamanhos afagos pelo público.

Sendo assim, vemos, na Lira dos Vinte Anos, um Álvares de Azevedo que tem muito mais a apresentar do que os belíssimos versos de "Lembrança de Morrer" e "Luar de Verão", que sempre figuram nos didáticos livros e nas explicações on-line sobre o poeta, numa falaz globalização Byroniana de uma poética que muito para além vai. Temos um poeta que retrata ironicamente uma sociedade de poderes desiguais, de culto aos que fazem Cultos e que, fora da ironia, de uma maneira pequena, fez a alavanca para certos métodos parnasianos, sendo, não obstante, o primeiro fio de uma corrente de pensamentos que transbordariam nos Simbolistas do final do Século XIX.

Abraços, Cardoso Tardelli

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