quarta-feira, 6 de julho de 2011

A Deturpação Biográfica e sua Consequência na Leitura da Obra

Caros leitores de o Sacrário das Plangências, o tema abordado nesta postagem, de certa forma, já fora tocado no início da existência do blog, mas com a abordagem, tão somente, do Romântico brasileiro Álvares de Azevedo (1831-1852), cujo mito ambíguo de "casto e doentio poeta", mas que, não obstante, participava das reuniões da Sociedade Epicureia (nas quais os participantes proclamavam-se personagens de obras de Byron (1788-1824) e praticavam o que a cidade de São Paulo da metade do Século XIX não permitia: boemia e fantasias de volúpia), atingiu em cheio a interpretação de sua obra, deixando a ilusão voar livremente sobre as leituras de suas obras. Porém, Azevedo não será o alicerce para exemplificar como a deturpação de uma biografia pode atingir a leitura: o foco deste tópico será Camilo Pessanha (1867-1926).

O português Camilo Pessanha, autor de Clepsidra (1920), teve, durante muito tempo, suas reputações morais, profissionais e poéticas questionadas. Quando, em 1894, desembarcou em Macau, pequena região localizada na costa da China, dominada pelos lusitanos desde 1557, mas que teve a ocupação reconhecida pelos chineses somente em 1887 (Macau foi reintegrada ao domínio asiático em 1999), seu nome já era comentado nos Cafés portugueses, tendo um pequeno renome por alguns poemas esparsos. Porém, ao contrário do que a crítica insistiu durante um grande tempo, grande parte da obra de Pessanha foi feita na China, e não na companhia de lusitanos em sua terra de berço, por esse motivo o seu nome era somente perpassado nas discussões literárias antes de sua viagem.

(Na foto: Camilo Pessanha)

O poeta de Clepsidra recebeu, após a sua morte em 1926, mesmo com a exaltação de sua poesia realizada por Fernando Pessoa (1888-1935) e por outros grandes poetas portugueses, críticas ferozes feitas por lusitanos que desconheciam os fatos de Macau, mas que bem conheciam as asas que um factoide podia atingir quando lançado ao ar.
Na tentativa insistente de diminuir Pessanha como pessoa, disse um de seus biógrafos que, em seu enterro, poucos amigos se encontravam, mas que mesmo estes não prantearam sua morte. Porém, segundo apurou Paulo Franchetti, que organizou a atual edição de Clepsidra, lançada pela Ateliê Editorial (*ver final da postagem), Camilo Pessanha foi enterrado como qualquer homem público de Macau da época, "com muitas autoridades presentes", grande quantidade de pessoas, além das menções honrosas em jornais do local.

Pessanha ganhou fama de um andarilho nu, de barba suja e de professor mal educado, ríspido e sujo. Franchetti, que pesquisou por mais de dez anos a obra e vida do poeta, teve a sorte de encontrar, em 1989, a única aluna de Pessanha na época ainda viva, que negou de maneira veemente as acusações feitas pelos críticos, alegando que o poeta sempre se vestia de maneira elegante, com os cuidados requeridos aos cabelos e barba (contrariando a fama de ter piolhos); além do mais, Dona Henriqueta, a aluna em questão, disse a Franchetti que o poeta era um professor de história magnífico, o que pode ser comprovado nos papéis de planejamento das aulas que Camilo Pessanha escrevia.

Segundo Franchetti, o poeta era, acima de tudo, um Dândi, que vestia-se rigidamente bem em qualquer ocasião, independentemente do traje convir ao local e ocasião, além de ter, em sua própria personalidade, uma ornamentação da retórica e das ações, algo que é típico dos Dândis, que magnetizavam, consequentemente, a atenção e inveja dos que não as tinham.

Camilo Pessanha traduziu muitos textos e poemas Chineses (hoje perdidos quase em sua maioria, sendo somente encontrados os que eram publicados em jornais), mas foi, pelos primeiros biógrafos, considerado um péssimo tradutor e uma pessoa que não dominava a língua chinesa (algo que, provavelmente, nem os biógrafos dominavam). Pessanha tinha um conhecimento bom da língua chinesa, tal como de sua cultura, mas não expandindo a um conhecimento esplêndido - mas nunca diminuindo, porém, o mérito de levar a lume os textos chineses aos leitores de língua portuguesa.

Não podemos esquecer de que Clepsidra é um livro Simbolista, e como tal, sofreu muitas críticas e comparações com o movimento francês, na tentativa da anulação da singularidade de cada poeta. Ou seja, como já o havia dito, mesmo com a corrente fama de Pessanha nos Cafés portugueses, algo que só aumentaria após o lançamento de sua obra, a Clepsidra foi embrumada pela fantasia do homem sem escrúpulos, sujo, mesmo dotado de certo gênio de poeta e de uma mente de memória magnífica (revela-se aí o mito de que Pessanha nunca anotava seus poemas em papel, pois os decorava na mente), formando uma imagem dum desdenhoso com o seu Ofício Poético, pois muitos de seus textos se perderam na sua "retenção mental", consequente da repulsa que a imagem da pessoa, que como vimos, foi moldada em cima de ilusões, passava em primeiro lugar. Questiono os leitores de o Sacrário das Plangências se um autor que fez história com um livro de somente quarenta e oito poemas poderia ser tão incompetente assim. Além do mais, poemas como este soneto, o qual já considero um dos meus prediletos do Simbolismo Português:

I

Tenho sonhos cruéis: n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente.

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-m'o coração dum véu escuro!

Porque a dor, esta falta d'harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:
- Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.

Evidentemente, muito há ainda para se esclarecer sobre a vida de Pessanha, mas os mitos que se criaram e, consequentemente, perturbaram a leitura e interpretação de sua obra, foram determinantes para um caminho do Personagem Pessanha ser mais altivo do que o poeta Pessanha. Na literatura, transbordam casos desse tipo. Para exemplificar, o já citado Lord Byron, cuja face obscura deixou para trás a aventureira, política e romântica que ele tinha. Não à toa, os "Versos feitos sobre uma taça de crânio humano", poema mais célebre de Byron aqui no Brasil, é dado como uma obra-prima do Romantismo Inglês, mas há, pela tríade inglesa (composta por Percy B. Shelley (1792-1822), Keats (1795-1821) e pelo próprio Byron), poemas muito superiores. Sobre a face política de Byron, podemos comentar, inclusive, que foi ele admirador de Napoleão Bonaparte - dedicando-lhe uma Ode -, além de ter sido comandante de tropas Gregas nas guerras da independência do império Otomano, escrevendo uma de suas grandes obras - "As Ilhas da Grécia! As Ilhas da Grécia!". Foi no território grego que Byron morreu após febre constante, provavelmente contraída de ferimento de guerra.

(Na foto: Florbela Espanca)

Para além de Byron, Florbela Espanca (1894-1930), Simbolista de versos sofridos, cujo final da vida toma mais a curiosidade das pessoas do que a própria obra. Criou-se o mito, diante do sofrimento dos versos, de que Espanca havia se matado, algo que foi desmentido pelo padre que fez a missa de corpo-presente, que alegou, sob as leis da igreja, que ela não teria uma missa católica caso houvesse cometido suicídio.

Não somente na literatura, mas na área da pintura, no caso mais fulgente que há, o surrealista Salvador Dalí (1904-1989) é mais conhecido pelas excêntricas manias do que propriamente pela sua arte de Sonho. Mas, em seu caso, ele próprio moldou essa figura estranha, de fato surreal, para tornar-se uma figura pública para, assim, ficar na história em vários âmbitos. O grande questionamento é se Dalí é visto como um pintor ou como um personagem, o que afeta diretamente o posicionamento de seriedade perante as suas obras.

Inegável é o fato de que a biografia é essencial à compreensão correta de uma obra, pois tendo o alicerce biográfico, temos o contexto no qual o escritor decantou seus pensamentos em forma de versos ou capítulos. Porém, vê-se claramente que uma biografia mal feita tem efeitos mais danosos a uma obra, mesmo que essa seja de qualidade magnífica, do que podia se imaginar. Mesmo que muitos neguem, a figura do artista ainda é essencial para a interpretação do texto, até mesmo para o interesse pela sua obra.

*A Ateliê Editorial está lançando no Brasil boas edições dos livros de alguns Simbolistas Portugueses e Brasileiros. No caso dos Lusitanos, , de Antônio Nobre (1867-1900) e o Clepsidra, de Camilo Pessanha - edição em que me baseio para a parte do autor referido. Além deles, há a edição fac-similar de Faróis, de Cruz e Sousa (1861-1898). Um trabalho louvável para uma poética que tendia ao esquecimento.

Abraços, Cardoso Tardelli

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