segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O livro-sequência "Drácula - O Morto-Vivo" tem uma razão de existir?

Caros leitores do Sacrário das Plangências, este post terá um conteúdo mais crítico do que o normalmente encontrado neste espaço. Quando se é lançada uma continuação de uma obra-prima, ainda mais cem anos depois da primeira versão, é natural que se comparem certos aspectos das obras. E eis o que farei.

O livro Drácula - O Morto-Vivo é a sequência do Drácula (1897) escrito por Bram Stoker (1847-1912), escrito pelo sobrinho-bisneto do escritor irlandês - Dacre Stoker - e por um aficionado pelo tema - Ian Holt -, que já havia feito um roteiro para o livro In Search of Dracula, de Raymond McNally e Radu Florescu, pelo qual se baseara Francis Ford Copolla ao rodar o seu "Drácula de Bram Stoker" (1992). O livro, publicado em 2009, mas pensado dez anos antes, como qualquer continuação não-escrita pelo escritor original (além de redigida mais de cem anos depois), necessitava de um alicerce de justificativas no enredo, nos personagens e, posteriormente, dos próprios autores.

Podemos analisar o livro sem os tais de spoilers, ou seja, sem revelar muito da trama. O questionamento que faço é, pura e simplesmente, sobre a razão de existência do livro. Antes de partir para algumas notáveis falhas dos personagens, discutirei as justificativas dos autores para a concepção da obra.

Em primeiro lugar, da parte de Dacre Stoker, a obra veio no intento de resgatar o nome do personagem Drácula para a sua família. Logo quando fora lançado o romance original, em 1897, a frustração de Bram Stoker com a pouca fama de seu livro foi imediata. Oscar Wilde, que foi colega dele de Universidade, era o mais famoso escritor de horror da época - e nem mesmo a prisão do autor de O Retrato de Dorian Gray alavancou a fama de Stoker. Após a morte de Stoker por consequência de um derrame, o livro teve uma montagem para o teatro e ganhou notoriedade. Logo esta estrela faria com que um filme fosse baseado na história (Nosferatu, em 1922, lançado na Alemanha), mas a viúva de Stoker, Florence não ganharia um centavo sequer pelos direitos autorais dos quais tinha realmente posse. Os direitos autorais de que a viúva de Stoker usufruiu foram os das adaptações para o teatro feitas no Reino Unido. Logo que fora lançado o Drácula da companhia Universal (1931), com o ator Bela Lugosi no papel do vampiro, a proporção do desastre foi hedionda: pobre, a mulher de Stoker soube que, por uma falha de documentação, mesmo em vida, Stoker não recebera um centavo de seus direitos vindos dos EUA desde 1899, pois a partir desta data as obras dele haviam caído em domínio público. E, sabemos todos, que após um tempo o grande referencial do personagem Drácula não seria a obra de Stoker, mas as várias produções de Hollywood, desde as mais sensatas até as mais absurdas. Portanto, num aspecto simples, Dacre Stoker escreveu o livro - o seu primeiro - para volver o nome Drácula ao sobrenome Stoker e tentar manter esse "sagrado personagem" nos mantos familiares, mesmo porque o personagem Drácula tornou-se maior que tudo, mas o crédito a Bram Stoker e à família ainda não foi dado na justa proporção, segundo Dacre. Pegando o ponto das produções cinematográficas, analiso os motivos pelos quais Ian Holt chamou Stoker para escrever Drácula - O Morto Vivo (o convite fora feito pelo especialista, não pelo membro da família Stoker).

Ian Holt teve o primeiro contato com a história por intermédio do filme Drácula estrelado por Bela Lugosi. Quando viu o filme, ficou encantado e logo procurou o livro, pois sabia que o roteiro era baseado numa obra literária. Quando terminada a leitura, percebera, em suas palavras que fora "enganado por Hollywood!". Apesar de ser um dos mais fiéis filmes baseados na obra de Stoker, acometem-no uma série de desvios de enredo, alguns aceitáveis, outros estranhos, ainda mais para uma companhia como a Universal (como o sumiço do personagem texano Quincey Morris). Ian Holt, ao notar que as histórias dos filmes estavam se fundindo com a história do livro, ficou preocupado. Quando Coppola lançou o seu Drácula (lembrem-se que o roteiro do filme havia sido baseado no roteiro escrito por Holt para o In Search of Dracula), criou-se um mito de amor entre as personagens Mina e Drácula. Este amor, no livro, nunca existiu - e somente fora levemente sugerido, por consequência da ligação-mental da mulher de Jonathan e de Vlad Dracul, nunca concretizado, porém. Esse mito de paixão entre os dois levou ao mundo certas denominações ao Conde, como "Príncipe das Trevas", ou no inglês, como Mina o chamava no filme: "My dark prince". Holt pensou numa continuação para aplicar uma conjunção de ideias entre o livro e os filmes mais fieis. O amor inexistente de Mina e Drácula no segundo livro foi descrito como fato na época dos acontecimentos do primeiro, entre outros fatos e localizações (Abadia Carfax, Manicômio do Dr.Seward, a casa dos personagens) que, em um século, foram se misturando por "livre-atuação" cinematográfica.

Portanto, sabendo-se que, por parte de um familiar de Bram Stoker, havia a intenção de rejurar a imagem de Drácula ao brasão familiar, e por parte de Ian Holt, havia o intento de chegar a um consenso entre as produções de Hollywood e o livro de Bram, vamos analisar o livro, em si.

Drácula - O Morto-Vivo tem como base alguns personagens que já haviam no romance de 1897 (Mina, Jonathan, Quincey Harker - o filho do casal, cujo nome fora dado em homenagem à morte do texano -, Dr. Van Helsing, Arthur Holmwood e Dr. Seward), além de outros inseridos na trama, como Elizabeth Bathory, o ator teatral Vladimir Basarab, o próprio Bram Stoker, o detetive Cotford, um obstinado à caça de Jack, o Estripador, que é um personagem vago, brumoso, mas que se revela alvo. Para ter uma trama, baseia-se numa falha do romance original (Drácula, para ser morto, tinha de ter em seu peito uma estaca encravada e sua cabeça decepada. No livro, porém, a garganta é levemente cortada e uma faca posta em seu peito, não uma estaca, fazendo com que o corpo do Condo se desfizesse numa bruma. Sabemos que Stoker falara em seu romance que "Drácula conseguia fazer-se em todas as formas da natureza", portanto, foi uma escapatória para os autores do livro), mas, tendo como alicerce os personagens do livro anterior, comete erros que, talvez, não foram percebidos pelos autores.

Visando meramente os diálogos, posso concluir que personagens do Século XIX foram transfigurados para o Século XXI. Não era necessária a mesma prolixidade verbal de Bram Stoker, mas o vocabulário chulo de personagens que também apareciam no outro livro (e que nunca haviam falado uma palavra nesse sentido), os diálogos mais breves possíveis, a falta de sinônimos - em contraste com a riqueza vocabular de Bram Stoker -, deram a impressão de que eu estava diante de outras personas, ou, pior, diante de um roteiro cinematográfico, e não de um livro que visava a conjunção das confusões entre os filmes e o Drácula, de Bram Stoker, não do linguajar. Mesmo Van Helsing, o personagem mais complexo do primeiro romance, fica sem palavras e inerte, em certa parte do romance.

O caso de Quincey Harker é, talvez, de um anacronismo interessante. Jovem, forçado pelos pais a estudar direito, mas que sonha em ser ator de teatro, tem momentos de serenidade mental dignos de um culto que ama Shakespeare (o sonho maior dele é interpretar uma peça do poeta inglês ao lado de Basarab), mas, em certos momentos - que, com certeza, são os mais enfadonhos do livro -, Quincey entra num combate contra os pais, o mundo e a vida, todos eles com argumentos muito frágeis, e que parecem com uma crise de identidade de um adolescente contemporâneo. É um personagem-chave, mas cuja fraqueza de argumentos  e de personalidade somente enfraquecem o enredo. Ao ler o livro, veio-me a ideia da "perpétua história" à qual tanto ouvimos, ou seja, aquele diálogo de que "sempre foi assim" e de que "o ser humano sempre agiu assim". Mas todos sabemos que, apesar da essencialidade dos sentimentos humanos estarem, a custos duros, rígida em nosso espírito, os seres humanos nunca foram os mesmos em suas gerações - e nem o serão nas futuras; e eis o encanto do passado, do presente, do futuro e da óbvia transfiguração do porvir no hoje.

A história, em si, seria aprovada por Bram Stoker, se este quisesse, de fato, lançar uma continuação para a sua obra-prima. Apesar do distanciamento entre a qualidade literária do primeiro e segundo livro, muito devido às falhas de redação, o enredo é muito bom. O meio pelo qual Drácula não foi morto fora uma saída boa, assim como todas as consequências desse fato durante o texto. A inserção de personagens históricos na trama desaguou numa enredo que nos leva para a data base do livro (início do Século XX) e até mesmo aos remotos tempos de Elizabeth Bathory (Século XVI).

O pecado-essencial de Dacre e Ian não foi escrever uma continuação, mas foi a falta de fidelidade aos personagens originais, o que me leva a concluir que a obra não é fiel estéticamente (e nem tematicamente, se formos contar as várias distorções que há no livro, mas que são aceitáveis pelos motivos dados por Ian Holt na justificativa da escrita da obra) ao velho Drácula, de 1897, apesar de ser um bom livro. A tentativa de dar profundidade aos personagens foi falha por falta de palavras e afobamento descritivo, algo comum na "Nova-Geração Americana de Literatura".
Portanto, Drácula - O Morto-Vivo, no aspecto pessoal dos autores, foi concebido com justificativa plena. Mas, no aspecto literário, é falho por seguir a linha de raciocínio das novas obras de prosa: capítulos curtos, diálogos rápidos, ações velozes, resoluções de problemas ligeiras, levando consigo, como um mar agitado, personagens sacrificados por uma escrita que mal nos mostra a quintessência do ser.

Abraços,
Cardoso Tardelli

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