sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A Poesia como Ciência - Eis que surge o medo para a sua leitura?

Caros leitores do Sacrário das Plangências, nesta postagem tenho o objetivo de discutir alguns aspectos da leitura poética e de sua relação na sociedade atual. O título é auto-explicativo, mas requer divagação: em nossa sociedade inundada da "Ordem Científica" (leia-se "Ordem" também num sentido em que estas as ideias - as ditas "Científicas" - tão-somente têm direito de cidade), como a leitura de um texto poético poderia ser encarada pelas pessoas sem ser pelo viés da ciência? Faço um adendo de imediato: não vamos confundir a leitura com a análise-formal de um texto. Esta sim, apesar de minha rejeição à palavra Ciência em um contexto didático, pode ser considerada uma ciência (no decorrer da postagem, vamos analisar, não obstante, a letalidade a que esse método pode levar a arte poética).

Talvez muitos já tenham ouvido, depois de uma pessoa se deparar com a leitura de um poema, algo como "não entendo poesia" ou coisas piores ainda, como "não sou poeta, portanto, não compreendo esse tipo de texto". A leitura de um texto poético em nossa sociedade é analisada da mesma forma pela qual analisamos um método científico acadêmico-restrito, ou até mesmo a leitura de um poema é encarada com o mesmo grau de mistério de uma resolução de um exercício de Matemática, Física, entre outras Ciências Exatas. Porém, essas mesmas pessoas que falam que não entendem poesia, leem prosa, muitas vezes, com tranquilidade. Não discordo que a poesia que um gênero que não raramente passa perto do abstrato, mas, em muitos casos, a imagem é tão clara quanto a luz do alvorecer.


Um dos argumentos mais comuns e frágeis contra a arte poética é aquele velho "um poema não tem personagem". Sabe-se que um poema que não causa sensações ao leitor desagradou, pois o intuito da arte poética é ser Belo (e, como Keats divagaria em sua Ode sobre uma Urna Grega, "a beleza é a verdade") e, consequentemente, causar uma comoção. Os sentimentos do autor, portanto, encontram-se com o espírito aberto do leitor - que torna os próprios sentimentos e a si mesmo os personagens da poesia e de seus enredos.
(Foto: Fagundes Varela)


Pergunto-me, pois, se os versos fossem "transformados" em sentenças comuns, o entendimento dessas pessoas tornaria-se melhor? Como ficaria a parte nona de Juvenília, composta pelo nosso Romântico Fagundes Varela (1841 - 1875), transfigurada em sentenças simples, mas rimadas de acordo com o poema original, (sem as tradicionais barras que dividem os versos) e que trazem a divagação original? Vejamos:


JUVENÍLIA

IX

"Um dia o sol poente dourava a serrania, as ondas suspiravam na pria mansamente, e além nas solidões morria o som plangente dos sinos da cidade dobrando Ave-Maria. Estávamos sozinhos sentados no terraço que a trepadeira em flor cobria de perfumes; tu escutavas muda das auras os queixumes, eu tinha os olhos fitos na vastidão do espaço.
Então me perguntaste, com essa voz divina que a teu suave mando trazia-me cativo:
- Por que todo o poeta é triste e pensativo? Por que dos outros homens não segue a mesma sina?
Era tão lindo o céu, a tarde era tão calma... E teu olhar brilhava tão cheio de candura, criança! que não viste a tempestade escura que estas palavras tuas me despertaram n'alma!
Pois bem, hoje que o tempo partiu de um golpe só sonhos da mocidade e crenças do futuro, na fronte do poeta não vês o selo escuro que faz amar as tumbas e afeiçoar-se ao pó?"

Bem vemos que, apesar de ter perdido a feição versificada, manteve-se musical essa magnífica obra de Varela. Muito vale notar que o poema é narrativo, como vários outros da época, panorama que se manteve em muitos outros estilos (o Parnasianismo brasileiro chegou a fazer adaptações em prosa para algumas obras poético-narrativas de autores estrangeiros, como em o Rei Fantasma, poema em quartetos de Goethe, traduzido para nossa língua em prosa por Francisca Júlia). Nota-se que o poema de Varela, sendo narrativo - em versos ou não -, é de fácil interpretação. Algumas palavras que poderiam causar dificuldade ("plangente", "aura") são facilmente achadas em dicionários on-line. Porém, creio que, ao retirar a aparência de versos, retirarei o manto fantasmagórico que a muitos tornam a leitura poética uma dificuldade desde o início. Mas o que, de fato, transforma uma estrofe em algo tão misterioso? Sentenças quebradas (enjambements), musicalidade incomum, ritmo? Não creio.

Quando o ensino de arte poética é praticado em escolas, muitas vezes é enfatizado o caráter formal do texto, dando importância à métrica, ao valor da rima, ao tipo da rima no contexto da estrofe, e se aquela estética satisfazia ao parâmetro do estilo literário escolhido pelo autor. Quando referia-me à perspectiva de um leitor que via um texto poético qual um texto de compreensão difícil, exclusiva para poucos (no caso, aos acadêmicos), tinha como intenção mostrar em qual momento começa essa perspectiva. Quando se dá uma suposta ciência em detrimento do texto - que é altivo e superior a quaisquer que sejam as análises de métrica ou valor de rima -, a arte poética funde-se às Ciências Exatas, porque o conteúdo poético e humano foi posto de lado para focalizar uma análise rígida e concreta da estrutura poética.

Ao mesmo tempo em que isso ocorre, o real valor da arte poética não é posto à visão dos alunos, que leem dois poemas - se muito - de cada autor, além de resumos contendo a divisão "Estética" e "Temática", que são mostradas em seções anteriores aos poemas dos autores e postas nos devidos movimentos literários. Vê-se, portanto, que a "Estética Plástica" - o nome correto da estética a ser discutida - é o ponto inicial de uma análise textual de um poema atualmente.

Inegavelmente, contagens silábicas, referências de valores de rimas (apesar do meu questionamento sobre a real importância que esses valores impõem num poema), entre outros estudos da Estética Plástica, são importantes para situar o aluno em determinados movimentos literários (é impossível analisar o período Parnasianismo/Simbolismo/Modernismo sem saber de métrica e a sua consequência na musicalidade), mas a ausência de um estudo melhor sobre os literatos soa-me estranha. Não se trata somente de um estudo sobre a obra, mas sobre os autores. Não posicionar o aluno no aspecto, que é real, da influência biográfica sobre a obra é uma grande falha. É quase explicar o lançamento de Broquéis (1893), de Cruz e Sousa, que foi livro essencial para o Simbolismo no Brasil, sem colocá-lo no contexto pós-abolição (1888) e explicar que Cruz e Sousa já havia lançado um livro - Missal -, o qual recebeu críticas horrendas, algumas dizendo que "Cruz e Sousa não negava a ascendência dos primitivos", e que "ele era um maravilhado" diante da civilização". O título Broquéis, sabem os que gostam de Cruz e Sousa, fora escolhido após o lançamento de Missal - e seu significado (pequeno escudo; no figurado: proteção) deixava claro o quanto Cruz e Sousa havia ficado abalado pelas críticas.

Portanto, fundir o ensino da arte poética com métodos de ensino das Ciências Exatas parece-me um erro que leva os alunos a um desinteresse quase perpétuo ao estilo - que bem sabemos, pouco tem de misterioso. A poesia, assim como qualquer matéria de Humanidades, tem de ser ensinada com o aspecto básico de que o alvo principal do estudo é amplitude do pensamento humano sobre as coisas que o rondam, inclusive sobre ele mesmo, naquela tentativa de encontra-se num panorama diferente do comum. Sabendo que as divagações sobre o ser não são possíveis de serem postas de uma maneira exata ou prática, de fato, é impossível chamarmos a Arte Poética de Ciência Poética, como quase está sendo concretizado estudo de poesia, por consequência do enfoque nos aspectos da Estética Plástica (talvez semelhante à análise de um quadro; podemos analisá-lo de um ponto de vista emocional, ou seja, de como a aparência e o jogo de cores e traços afetaram o seu ser - ou podemos julgar de um ponto de vista Plástico, logo, a perfeição dos traços ou o aspecto temporal daquele estilo e se, por consequência, ele se encaixa à época na qual ele fora pintado).

Cogitações como "há um problema básico de interpretação de texto", apesar de reais e gravíssimas, não julgo necessárias para a análise desse "fantasma da poesia", pois coloco exemplos de pessoas que leem prosa com facilidade, mas têm uma dificuldade imensa em compreender um texto poético. Tampouco estou falando que todos devem gostar do gênero poesia; digo somente que a compreensão de um texto poético inicia-se, atualmente, no aspecto mais exato e formal do estilo, e não da interpretação do texto, em si. Desenvolvendo o que no início havia dito, naquela analogia com algumas das Ciências Exatas, é como se alguns vissem a poesia qual uma equação a ser resolvida - e de maneira muito enfadonha.

A poesia é um gênero desvalorizado entre os jovens, assim como a música erudita (outro caso em que a apresentação da forma vem em primeiro lugar e soa complexa demais, fazendo com que muitos percam os intentos básicos de um ouvinte, que é tão somente ouvir e entregar-se às melodias escutadas), e para mudar o panorama dessa desvalorização deve-se, em princípio, deixar claro ao aluno o conteúdo humano da poesia, além de evidenciar a grandeza do gênero na amplitude da Literatura. Ninguém se interessará por poesia no Brasil se não se fizer um contexto histórico (na junção óbvia, porém vaidosamente difícil, de professores de literatura e história), se a obra não for colocada à mercê dos sentimentos e ânsias dos alunos (ao contrário do que defendem muitos, ler Camões não é anacrônico e diz, muito sim, aos jovens de nosso tempo; as sociedades mudam, mas o afã humano, num aspecto geral, mantém um alicerce básico, independentemente da época), e, por desenvolvimento de temática, obter a divisão da análise da obra - a mais importante - e da análise da Estética Plástica, que poderia ser dada de uma maneira muito mais interessante, envolvendo os contextos intelectuais de cada época.

Mas antes que me chamem de platônico (o que não me ofende), por discorrer algo que é impossibilitado pela natureza científica e escolar de nossa sociedade, portanto por supor "um mundo das ideias", todos sabemos que a estrutura de ensino básico no Brasil é ruim. Mesmo quando julga-se boa, caso das célebres particulares, fazem dos alunos espectros dos números rumo ao Vestibular, instituição posta num altar sabe-se lá por qual motivo. Nas escolas públicas, as Humanidades perdem aulas a cada ano; nas particulares, prestígio. Em si, em ambos os casos, e na questão poética também, numa sociedade em que "somente o que é produzido pela Ciência deve ser levado a sério" é natural a rejeição do que "não se toca, não se vê", mas que demasiado sente.

Abraços,
Cardoso Tardelli

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