sexta-feira, 2 de agosto de 2013

A Sexualidade no Movimento Romântico

Caros leitores do Sacrário das Plangências, a temática deste tópico tentará, de certa forma, desmitificar com certas percepções que perambulam comumente acerca do movimento Romântico e de sua época. Ainda há a ideia de que os Românticos viveram sob o regime de castidade, à procura das também castas mulheres "pálidas, doentias e tristonhas" - imagens tão corriqueiras à época. Mas é só procurar o cotidiano das cidades onde viviam os poetas - muitos dos quais estudantes de direito -, para ver como a postura de castidade era, em sua grande maioria, estritamente literária.

Criou-se uma convenção de ideias que só prejudicam a leitura e a contextualização do Romantismo. O conceito completamente desconexo de "amor romântico" que "só existe no ocidente" é uma dessas. Um amor "idealizado", "nunca concretizado", "platônico por essência" (fica sempre a sugestão da leitura do Banquete, de Platão, para entender a totalidade do conceito amor platônico), e que criou sérios problemas para a mentalidade ocidental, muito correta no modo de amar. Creio porém, que não há algum grau de correção ou não nesse ponto - simplesmente todos os movimentos Românticos tinham como contexto uma sociedade conservadora - e a perspectiva ocidental, de lá para cá, não mudou muita coisa - e não foi culpa do Romantismo.

Tornando ao que importa: em 1850, época em que Álvares de Azevedo já estudava na Academia de Direito do Largo de São Francisco, a cidade de São Paulo tinha em torno de 14 mil habitantes (fonte: Formação Histórica de São Paulo, de Richard Morse) - sendo ainda pouco mais que uma cidade provinciana com uma universidade em seu centro -, e é por essa época que os bordéis começam a surgir na cidade de São Paulo. Segundo Ubiratan Machado, em seu A Vida Literária no Brasil durante o Romantismo, já era tradição, desde 1840, o meretrício em São Paulo - mas o de mestiços, em que muitas das mulheres eram exploradas pelas próprias mães. Nas palavras de Ubiratan: "O desfile começava à noite, depois que o comércio fechava. Cobertas de mantilhas, elas seguiam pelas ruas garoentas e mal iluminadas, em direção às repúblicas dos estudantes e às casas noturnas, que permaneciam abertas até a madrugada. Entre essas vendedoras do amor, não era raro misturarem-se leprosas, aproveitando-se das sombras da noite." Vale lembrar que já à época de 1850, os alugueis de repúblicas se tornaram muito rentáveis aos cidadão da cidade de São Paulo, ao contrário do panorama inicial encontrado pelos estudantes, em 1827, quando tiveram de morar nas celas do convento da própria faculdade. 

(Na foto: Bernardo Guimarães)
Tornou-se épica a Sociedade Epicureia, pensada e criada pelos maiores talentos da época - Bernardo Guimarães, Aureliano Lessa e Álvares de Azevedo, apesar do Maneco não ter tido saúde suficiente para a participação das históricas orgias feitas na Chácara dos Ingleses, que ficava na Rua da Consolação. Bernardo Guimarães depõe, acerca das farras: "Alguns estudantes que se entregaram mais doidamente a esses excessos, ou que eram dotados de uma constituição menos robusta, de lá saíram com moléstias de que depois morreram". Segundo Ubiratan Machado, Guimarães dizia de uma orgia em que estudantes e prostitutas passaram mais de quinze dias trancafiados e na qual, muito provavelmente, Ernesto Ferreira França teria contraído lepra, morrendo posteriormente.
O próprio Guimarães, lembrado sempre por sua "Escrava Isaura", mas cuja poesia tem fortes feitios irônicos contra o próprio Romantismo, tem como um dos pontos altos de sua obra poética a curiosa "A Orgia dos Duendes".
Sobre a obra de Álvares de Azevedo, é a sua sua obra em prosa que mais palpita sexualidade. Seja nos contos de "Noite na Taverna" ou na peça "Macário", há claras referências ao ato sexual - ou, ao menos, ao meretrício ("Macário", por exemplo, termina com o demônio e Macário começando a observar uma orgia). Na "Noite na Taverna", no capítulo de Solfieri, há talvez uma das mais clássicas e sexualizadas passagens de nosso Romantismo, pois naquela intensa passagem em que Solfieri descreve um "gozo fervoroso" com a amante, é que se destacou-se o caráter necrófilo de sua luxúria.

Fagundes Varela, o segundo maior da geração "mal do século", teve um caso de três meses com Ritinha Sorocabana, atriz circense que se entregou à vida da prostituição ao chegar em São Paulo (Ritinha, diga-se foi uma das mais constantes musas do poeta), quando a cidade já colhia a evolução advinda do café, transformando a prostituição em algo mais requintado do que em meras filas à frente de repúblicas. E, no que se refere à sexualidade, é muito mais evidente, com certeza, a de Castro Alves, que além de ter tido um público caso com Eugênia Câmara, famosa atriz portuguesa da época, relatou em seus poemas o "amor carnal" de forma clara, não substancial, culpada, com aquele medo de macular a virgem, como era comum aos Românticos brasileiros - afetados pela tradição portuguesa conservadora quase intrínseca ao nosso povo.

Mas, fora do contexto universitário, no Rio de Janeiro, pensamos em um contexto cultural e que, pouco a pouco, crescia durante o Segundo Reinado: o teatro. Normalmente, as peças apresentadas, além de raras, eram popularescas e ruins - fossem elas daqui ou da França. Poucas vezes os autores brasileiros renomados obtinham alguma chance de apresentar as suas peças, muitos menos as que tentavam trazer algum questionamento ou ousadia. Com o advento da iluminação a gás - muito mais intensa do que a por azeite -, as saídas noturnas se tornaram mais comuns à elite. A prostituição, por consequência, sofisticou-se também. E é nesse contexto, pelo ano de 1857, que a casa-concerto Alcazar Lyrique Français é inaugurada.

Segundo Ubiratan Machado, a casa viveu o seu auge em 1864, quando o seu diretor, Arnaud, trouxe de Paris várias artistas "esfuziantes". Segundo o autor, "numa época em que as mulheres mal mostravam a ponta dos sapatos, imagine-se a excitação provocada por artistas seminuas, atirando as pernocas bem contornadas par ao alto, em lascivos números de cancã". Em uma época em que os costumes familiares eram tão preciosos, uma casa como essa não podia passar desapercebida por "mosqueteiros da moral e dos bons costumes", e era muito comum que policiais interrompessem as apresentações (a mando das esposas e de incautos da ética) que, diga-se, tinham grande qualidade intelectual e teatral, ao contrário de grande parte das companhias de teatro brasileiras. 
O grande sucesso do Alcazar foi Orphée aux Enfers, de Offenbach, apresentada em 1865, e cuja grande estrela foi Aimée, grande musa da casa. A paixão dos estudantes e dos homens, em geral, por Aimée foi tão grande que, na ocasião de sua partida, as mulheres cariocas chegaram a soltar foguetes. Segundo Ubiratan, há um desenho de Henrique Fleuiss, na Semana Ilustrada, que mostra "mulheres ajoelhadas, agradecendo a Deus, padres retornando às igrejas, estudantes se interessando de novo pelo estudo" - tudo, enfim, porque Aimée partira.

As atrizes francesas do Alcazar se prostituíam por um alto valor. Somente, portanto, os muito endinheirados podiam arcar com os seus programas. Porém, havia as alcazarinas, brasileiras que ficavam na plateia, à espera de propostas - e eram, em suma, bem mais baratas do que as atrizes. Os casais, findos os espetáculos, iam para a Rua do Ouvidor, onde ficavam alguns hotéis especializados em encontros amorosos.
Frequentavam a casa, entre outros, o jovem Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo, Laurindo Rabelo, Francisco Otaviano, além de muitos políticos da época.

(No retrato: Casimiro de Abreu)
Quem não podia arcar com as despesas das atrizes do Alcazar Lyrique Français, ou tampouco das alcazarinas, optava por prostitutas de rua, que, na grande maioria, eram escravas ou portuguesas. Foi o caso, segundo Ubiratan, de Casimiro de Abreu - e o preço do programa, em 1857, era de 5 mil réis, possível para um caixeiro, profissão do poeta.
Aliás, acerca de Casimiro de Abreu, alguns comentários de Mário Alves de Oliveira, na Obra Completa de Casimiro de Abreu (Editora G. Ermakoff, 2010), fazem-se necessários neste tópico. Segundo Oliveira, a palavra virgem (e seus sinônimos virgíneo, virginal e virgindade) aparece mais de cem vezes na obra de Casimiro, e tal fenômeno é comum em todo o nosso Romantismo - de Álvares de Azevedo a Castro Alves, passando por Junqueira Freire (em breve comentarei sobre ele). Casimiro, como um bom jovem, tinha um lado sensual, folgazão, que fica claro neste trecho de uma carta destacada por Oliveira:

"Dizem que a lua se parece com as mulheres porque faz crescer os pepinos; a mim não sei se é a lua ou o que é que me faz crescer a tristeza ou o aborrecimento" (em 17 de Mario de 1859).

No poema "Clara", por exemplo, ele deixa claro uma inclinação sensual em sua poesia:

(...)
Mulher morena é ardente:
Prende o amante demente
Nos fios do seu cabelo;
(...)

Como Oliveira destacou, Mário de Andrade já tinha notado essa feição sensual na poesia dos Românticos e teceu, nos Aspectos da Literatura Brasileira, de 1972, o seguinte comentário:

"Em Castro Alves se sente sempre, ou pelo menos mais que nos outros, a mulher. Ele foi de fato um sexual perigoso, duma sexualidade animal bem correta. É exatamente o contrário de Casimiro de Abreu, que irrita pelas perversõezinhas com que recama a sua burguês dulcidão. Casimiro de Abreu é mestre nesse gênero de poesia graciosa, própria dos assustados familiares, que a gente vive esquecendo que no fundo é bem pouco inocente."

E sobre Junqueira Freire, que partiu para a vida monástica por pressão familiar e morreu muito cedo por consequência de problemas cardíacos, pode-se dizer que o claustro, mesmo sendo um fator fisicamente limitante, não o foi no que se refere à criação da poesia de Junqueira Freire, talvez um dos pontos mais altos de nosso Romantismo da segunda geração. E apesar de monge, a palavra "virgem" (não necessariamente no sentido de pureza, de "lirial objeto") não era esquecida em sua obra, sendo, muitas vezes, utilizada como . Um dos casos é o poema "Saudade", dedicado a um companheiro de claustro - o Frei Beto.

(...)
Não serias mais belo, em áureo engaste,
No colo de uma virgem?


Creio que com essa pequena amostragem já mostrei, em alguns âmbitos, alguns feitios da sexualidade durante o movimento Romântico, fosse ele em um contexto universitário, fosse ele em um contexto elitista ou, simplesmente, literário. Negar tal característica para representar os nossos Românticos como meros idealizadores do amor - alheios, inclusive, à sociedade que os cercava - soa como desonestidade intelectual. Inclusive porque, no Romantismo, além das temáticas amorosas, houve as temáticas sociais - de Gonçalves Dias, Fagundes Varela a, evidentemente, Castro Alves. E que se diga, no final do Século XIX, no auge da luta contra a Escravidão, a figura de Castro Alves foi utilizada muitas vezes como a representação do "poeta dos cativos", um símbolo da luta dos negros. Hoje, a imagem dele, aos olhos do movimento negro, não significa muita coisa. E, talvez, seja mais um exemplo de como o Romantismo, seja no amor, na morte ou no social, é lembrado de uma forma aquém do que deveria.

Abraços,
Cardoso Tardelli

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