segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Algumas semelhanças entre Cruz e Sousa e Antero de Quental

Caros leitores do Sacrário das Plangências, nesta postagem, longe da pretensão acadêmica de escrever um artigo de ampla comparação entre dois literatos considerados dos melhores de seus gêneros, pretendo mostrar algumas semelhanças, literárias ou não, entre o simbolista brasileiro Cruz e Sousa (1861-1898) e o romântico português Antero de Quental (1842-1891).

(Foto: Antero de Quental)
Muito se diz sobre a influência de Antero sobre a poetisa Florbela Espanca, o que é, em certa análise, evidente. Na ordem formal, faz-se claro que o ritmo dos sonetos de Quental se aproxima do ritmo obtido nos sonetos definitivos de Florbela. A métrica em ambos era decassílaba, em padrão, e sempre muito fluida, com chaves-de-ouro extremamente intensas, não excluindo, porém, uma fluidez de imagens absoluta dos quartetos. Acerca disso, segundo relata Manuel Bandeira, no prefácio da edição "Sonetos Completos e Poemas Escolhidos" (das Edições Ouro), Antero, na maioria das vezes, fazia os seus tercetos em primeiro lugar para depois escrever os seus quartetos -  caracterizando um foco maior na "chave-de-ouro".
Acerca de uma comparação temática, Antero, como poeta de amor, fica muito aquém de Florbela; complementam-se na busca perene pelo Ideal e por uma natural decepção por não encontrá-lo. As comparações e semelhanças entre os dois têm de ser desenvolvidas, porém, em outro post. Tratarei, na postagem de hoje, de uma comparação que é poucas vezes feita; talvez pela nossa crítica se basear na ideia de uma influência vertical, sem muitas variações e derivações; talvez pela crítica se basear não na temática, mas na ordem formal - um deságue dos pensamentos parnasianos e positivistas, fazendo com que a poesia se torne uma ciência, cheia de métricas e lógicas, antes de tudo.

Cruz e Sousa e Antero de Quental fizeram parte, em primeira análise, de movimentos literários diferentes. Se formos analisar as obras iniciais de Quental, veremos um romantismo ingênuo, ao qual o próprio chamaria posteriormente de "Heine de segunda categoria" (em Sonetos Completos e Poemas Escolhidos; Edições Ouro). A partir de suas "Odes Modernas" (que também seriam rejeitadas pelo autor, por causa de seu tom excessivamente épico), começamos a ver momentos de absoluta genialidade. Inspiradas pelos ideais socialistas, são cânticos longos e cheios de subjetividades, apesar do tom grandioso. Mas foi em seus "Sonetos" que o seu feitio essencial e mais maduro apareceu: o do poeta metafísico.

Foi Antero de Quental, de certa forma, um poeta da morte, como definiu Manuel Bandeira. Mas, antes de tudo, um poeta metafísico, um perscrutador da "essência das cousas". Segundo o próprio Bandeira, essa busca pelo universo que o cercava o levou a uma degradação do ser que se tornou irreversível. Foi nessa época - em que ele ficava horas deitado em "cruel divagação" - a primavera criativa em que ele escreveu obras-primas da literatura em Português, como "Lacrimae Rerum":

LACRIMAE RERUM - Antero de Quental

(A Tommaso Cannizzaro)

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!

Aonde vão teus sóis, como coorte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vão busca a certeza, que o conforte?

Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas...

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das cousas tenebrosas...



Nesse soneto, assim como em outros do autor (por exemplo, "Contemplação"), Antero de Quental mostra-se um exímio poeta metafísico, que às vezes deixa de lado o poeta para cantar o filósofo que é o seu todo em suas correspondências e em sua autobiografia. Tomemos por exemplo um trecho de uma carta para Anselmo de Andrade:

"Ou o Universo é o delírio dum demônio, ébrio de sua maldade; ou para além do extremo arco da ponte da vida nos espera o seio vasto duma Bondade, a quem não esquece um ai, um suspiro só... Sem este equilíbrio de além-túmulo o mundo moral inclina-se sob o peso de suas ruínas acumuladas de séculos, e tomba e rola desamparado nos abismos do nada! Quando num prato da balança eterna se lança toda essa massa espantosa das desgraças humanas, tamanho peso só se compensa, pondo no outro o amor infinito - Deus. Sim, Deus! Espírito, Força, Princípio, Essência, Jeová ou Brama, que me importa um nome? Eu chamo a Deus justiça! Na queda e triste ruína das ilusões antigas, das velhas crenças das gerações, fica-nos eterna essa grande palavra. - E que está gravada no coração. Só arrancando-o a poderão tirar de lá. E nem assim. No deserto das alturas a água que o empolgasse leria justiça nas carnes palpitantes... e cairia assombrada!"

Há de se dizer que Antero de Quental divagava Deus de uma forma extremamente complexa; às vezes, dando a Ele um feitio humano e concedendo à mentalidade divina os mesmos questionamentos de um homem, como, por exemplo, à inquietude de buscar-se a si e não encontrar-se (em Ignotus), mas também concebendo a Deus o poder de saber todo o destino da humanidade (em Disputa em Família). Mas, constantemente, a figura de um Deus católico torna aos versos de Quental. Ele próprio chegou a declarar que "pouco a pouco, convencia-se mais com o Catolicismo", mas com algumas ressalvas, pois o seu pensamento ia ao encontro de um panteísmo ao qual a crença católica não abraça.

(Foto: o jovem Cruz e Sousa)
E é a partir desses pontos que começarei a ligar Antero a Cruz e Sousa. O Dante Negro, como Cruz era chamado por seus colegas, segundo Andrade Muricy, em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, foi leitor de Antero, com quem "se identificava com o espírito rebelde". É compreensível, pois, essa observação de Muricy, já que Cruz e Sousa era, assim como Quental, um socialista - apesar de ter uma visão diferente do português acerca da importância da política na Arte. Quental não se detinha de utilizar claramente argumentos políticos em sua obra; Cruz e Sousa, apesar de ter poemas como "Escravocratas" ou o pungente "Emparedado", cria que uma página de arte era pura demais para que se pusesse política nela.

Mas, assim como Antero, Cruz e Sousa, acima de tudo, foi um poeta metafísico. Ivan Teixeira, em seu prefácio para a edição fac-similar de Faróis da Ateliê Editoral (1998), colocou a metafísica de Cruz e Sousa como "uma elevada concentração de significado poético na investigação existencial do indivíduo". 
No sentido rítmico, Cruz e Sousa foi um poeta maior que Antero de Quental e, em uma análise simples, isso se deve por um deságue natural da estética simbolista em comparação ao soneto clássico que era praticado por Quental. Em obras como "Cavador do Infinito" ou em "Sorriso Interior" (ambos em Últimos Sonetos), Cruz e Sousa atinge níveis magníficos de análise metafísica. Ei-los:


CAVADOR DO INFINITO - Cruz e Sousa


Com a lâmpada do Sonho desce aflito 
E sobe aos mundos mais imponderáveis,
Vai abafando as queixas implacáveis, 
Da alma o profundo e soluçado grito.

Ânsias, Desejos, tudo a fogo escrito 
Sente, em redor, nos astros inefáveis. 
Cava nas fundas eras insondáveis 
O cavador do trágico Infinito. 

E quanto mais pelo Infinito cava 
mais o Infinito se transforma em lava 
E o cavador se perde nas distâncias...

Alto levanta a lâmpada do Sonho. 
E como seu vulto pálido e tristonho 
Cava os abismos das eternas ânsias! 


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SORRISO INTERIOR - Cruz e Sousa


O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!
   

Para Cruz e Sousa, a religião católica estava envelhecida - pensamento congruente ao de Quental -, e não era suficiente para a sua sede de absoluto. Tanto ele quanto Antero encontraram no Budismo algumas das respostas para essa ânsia. Daí a utilização, em ambos os autores, de termos como "Nirvanismo", "Nirvana" ou até, em Cruz e Sousa, de um transcendente "êxtase búdico". Posso afirmar que, se a ânsia de infinito, se a sede pela essência universal eram características do Simbolismo, também o eram da fase madura de Antero de Quental. Quem o negará neste soneto?

NIRVANA - Antero de Quental  

Para além do Universo luminoso,
Creio de formas, de rumor, de lido,
De forças, de desejos e de vida,
Abre-se como um vácuo tenebroso.

A onda desse mar tumultuoso
Vem ali expirar, esmaecida...
Numa imobilidade indefinida
Termina ali o ser, inerte, ocioso...

E quando o pensamento, assim absorto,
Emerge a custo desse mundo morto
E torna a olhar as cousas naturais,

À bela luz da vida, ampla, infinita,
Só vê com tédio, em tudo quanto fita,
A ilusão e o vazio universais.


Antero, cantor da morte, desejava a aniquilação do ser, enquanto Cruz e Sousa ansiava o ser em sua essência, mas em um soneto como "Consolo Amargo", também visualizava como a morte como um "feral letargo" e que, para os vivos, restava o esquecimento - que é, em terra, o consolo amargo.
Antero de Quental foi um pré-simbolista em sua fase madura; não em termos de revolução melódica ou com a introdução, por exemplo, de aliterações, mas em termos da ânsia de absoluto, da quase total exclusão da temática do tédio causado pela decepção no amor (tema Romântico) para a inclusão do tédio metafísico, por não alcançar as respostas existenciais às quais, talvez, só a morte responderia - um tema recorrente no Simbolismo. Talvez a fortíssima influência, no Brasil - entre os Simbolistas -, de seu soneto "À Virgem Santíssima" demonstre, de certa forma mais concreta, isso. Na França, à ocasião dessa fase mais madura de suas obras, o Decadentismo estava criando corpo e fama. Além do mais, As Flores do Mal (1857) já eram lidas na Europa há um bom tempo e que, nove anos depois do lançamento da obra de Baudelaire, Quental morou em Paris. Há de se lembrar que Eugênio de Castro e Antônio Nobre, dois dos maiores representantes do Simbolismo lusitano, só lançaram as suas obras simbolistas na aurora da década de 1890; , de Antônio Nobre, em 1892; Oaristos, de Eugênio de Castro, em 1890. Ou seja, em Portugal, Antero foi um precursor do pensamento Simbolista (não exatamente, deixando claro, de sua poética).
Para se ter uma ideia, 1893 foi o ano de lançamento dos primeiros livros simbolistas de Cruz e Sousa - Missal e Broquéis - e que tiveram influência do autor (que influiria mais ainda nas obras definitivas do Cisne Negro, como já mostrado)

E, finalizando, acerca de uma postura muito significativa de ambos: segundo Nestor Vítor, maior amigo do poeta simbolista catarinense, Cruz e Sousa só acreditava em poetas que vivessem a poesia e que a encarassem como "um monge enclausurado em seu ofício". Pelos depoimentos de conhecidos de Antero, recolhidos por Manuel Bandeira, quem mais, além de Cruz e Sousa (que, tuberculoso, chegava a escrever três poemas de madrugada, para ir trabalhar logo cedo na Central do Brasil), que o próprio Quental viveu a sua poesia e as suas crenças a ponto de, enfim, desgastar o corpo e a mente ao limite máximo?

Abraços,
Cardoso Tardelli



Um comentário:

  1. Obrigada por ter postado esta breve análise, pois esta me ajudará muito em um trabalho que pretendo desenvolver para uma cadeira do meu mestrado em literatura aqui em Portugal (embora eu seja brasileira). Aqui, pouco se conhece de Cruz e Sousa, o que é inaceitável rs... Por isso, queria fazer um trabalho comparativo, mas ainda não sei ao certo qual será o poeta português com que vou estabelecer o paralelo: se Antero de Quental ou Camilo Pessanha. De qualquer forma, estas informações sobre Antero figurarão no meu trabalho, pois são muito úteis para compreender o período em questão!

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