sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Alphonsus de Guimaraens e a Beleza Poente

Caros leitores do Sacrário das Plangências, decerto esta postagem parecerá mais rara aos olhos dos mais acostumados com longas análises. Assim como em um post em que brevemente discorro sobre os poemas "Sorriso Interior" e "Esquecimento", de Cruz e Sousa, neste apontarei, com alguns poemas não tão comuns, os aspectos da "beleza poente" que encontramos no mineiro Alphonsus de Guimaraens (1870-1921).

(Na foto: Alphonsus de Guimaraens)

O Simbolismo brasileiro incorporou algumas características do Decadentismo francês, entre as quais a obsessão pela imagem do poente. Segundo Fúlvia L.M Moretto, autora do "Caminhos do Decadentismo Francês", o movimento tem de ser encarado como "histórico", retirando-lhe "a conotação moral e política pejorativa que carrega, para ver nele um movimento de alto valor artístico que deseja valorizar, com beleza de 'sol poente', a consciência da finitude das coisas (...)". A França passava, então, por uma crise após a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), e claramente a certeza da finitude de um império cultural e econômico, juntamente com a descentralização do poderio econômico mundial, fazia literários como Verlaine, Mallarmé, Rimbaud terem a percepção de que, assim como nos grandes impérios antigos, a decadência francesa caminhava a passos largos (não à toa, por exemplo, em um livro como "Às Avessas", de Huysmans, o personagem Des Esseintes - um arquétipo decadente - lê, além dos decadentistas franceses, os poetas romanos contemporâneos à sua queda).

No Brasil, além da eterna promessa que um "fim de século" concede, havia a instabilidade da Monarquia (a queda foi em 1889), o movimento de abolição da escravatura (1888), e, após um tempo, a própria República que se mostrou de uma feição falaciosa. Eram muitas percepções poentes, politica e socialmente, também por aqui.

E é nesse contexto que Alphonsus de Guimaraens, morador de Ouro Preto e Mariana (onde foi juiz e viveu grande parte de sua vida), escreveu a sua obra. A percepção de finitude é uma das evidências em sua obra, fosse pela finitude da vida, fosse pela finitude da alegria ou de algo superior, incontrolável, mas que está sempre em contato sentimentalíssimo com o sujeito-lírico.
Eis um dos exemplos:

SONETO XVIII (em "Escada de Jacó")

A Oswaldo Araújo

De outro poente de luz, de outro luar de ventura,
Veio todo o meu ser, que não sofria lá.
Havia no meu peito uma estrela tão pura,
Que eu dizia: Não sei se o amor o colherá.

E o dia foi-se triste, e a noite veio escura;
O arvoredo morreu, secou-se a fonte já;
A atroz desolação do tédio e da amargura
É quem me vela o sono, e quem sonhos me dá.

Cambaleante segui, contemplando os espaços,
Onde eu via formar-se um medonho escarcéu...
Quis abraçar alguém, mas já não tinha braços.

Diante do meu olhar ergueu-se um mausoléu.
Só me restou a fé para guiar os meus passos...
A minh'alma é uma cruz enterrada no céu.


A simbologia é clara: o poente - símbolo da finitude - representa, ao lado do luar (que, entre as mil interpretações que podemos fazer, é um símbolo de transitoriedade) o ser mutável - mas, não obstante, triste independentemente dessas mudanças. Quando tudo se finda (o dia, o arvoredo e a fonte) vem o tédio, o spleen. E do posterior caos (primeiro terceto), surge o símbolo maior do que é, por essência simples, finito: o mausoléu. Mas é, então, que entra uma característica interessantíssima e singular não somente a Alphonsus de Guimaraens, mas a muitos simbolistas brasileiros: a influência católica e da cultura portuguesa. Se a finitude, para muitos, é a degeneração do ser, o fim da existência e da consciência, "a fé" surge para guiar os passos - e não é a fé no budismo, no nirvana (que também foi utilizada por certa parte do Simbolismo - inclusive por Cruz e Sousa), mas a fé no Deus católico, na "Virgem Santíssima" que Antero de Quental tão belamente cantou.

Eis outro soneto, no qual a simbologia é utilizada de forma muito mais evidente:

SUN DOWN (em "Escada de Jacó")

Muitas vezes, ao poente, a minh'alma de enfermo
É triste: o enterro passa, os vultos vão, de tochas
Que tremeluzem como estrelas rubras, do ermo
De um céu que se prolonga entre montes e rochas.

Segues naquele esquife, um anjo vem dizer-mo.
Uma essa erguida no alto, enfeitada de frouxas
Cortinas de galões amarelos, é o termo
Do caminho talhado entre açucenas roxas.

Triste sonho de quem vive a sonhar na vida
Com a eterna e doce paz de uma cova esquecida,
E traz no peito morto uma alma quase morta...

Suplício imemorial de quem estando vivo,
A receber no olhar todo o céu compassivo,
Vê passar o seu próprio enterro pela porta!


Assim como no outro exemplo, o poente serve de grande referencial: no caso, de referencial visual. Aliás, a energia visual desse poema é intensa, pois, além do poente, há as "tochas" que "tremeluzem como estrelas rubras", há a coloração das cortinas de galões amarelos e as açucenas roxas, que seguem pelo caminho. Todas as cores, notem, formam o cromatismo do ocaso. E quanto à simbologia da finitude, sem optar pela redundância, creio que o último terceto nos mostra muito mais do que uma longa explicação. No soneto que se inicia com "Cantem os outros a clara cor virente...", Alphonsus finaliza com o seguinte verso: "Cantem os outros a vida - eu canto a morte.", o que é absolutamente flagrante no que se refere ao aspecto da temática funerária e, por consequência, desse aspecto da transitoriedade e limitação das coisas a que estou referindo em sua obra.

O outro poema, no aspecto estudado, que pretendo mostrar de Alphonsus é o seguinte:

CANÇÃO XXIII  (de "Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte")

Ó poente que te vais em sombras mortas,
Para voltar depois,
Suavidade que desconfortas,
Como somos iguais os dois!

Envolto em nuvens cor de sangue, choras
Todos os dias o dia findo...
E como rosas, depois, auroras
No teu seio vão-se abrindo.

E de novo te desabrochas,
Cheio de vida, para depois
Bruxulear num clarão de tochas,
Seguindo o enterro de nós dois...

E no outro dia as mesmas rosas
No teu seio vão-se abrindo...
E voltam lágrimas chorosas
Depois, chorando o dia findo.

Ó poente que te vais em sombras mortas,
Para voltar depois,
Sofro o martírio que tu suportas...
Ah! não podermos morrer os dois!


O sentimento de finitude, no caso, é desejado pelo sujeito lírico. O poente, mesmo indo-se "em sombras mortas", logo volta. O poeta, que se coloca como "um igual" ao ocaso, desejando a aniquilação, não aceita essa característica que, de certa forma, configura em um perpétuo retorno do poente e, por consequência, de um estado espiritual do sujeito-lírico.

Não podemos, em um comentário por mera curiosidade, esquecer de falar sobre o aspecto geográfico e arquitetônico que as cidades em que Alphonsus morou impunham nessa percepção de "decadência" e "beleza poente". Ouro Preto e Mariana foram, à época da mineração colonial, riquíssimas. Ora, nem mesmo Ouro Preto chamava-se assim, mas era a "Vila Rica", o centro de uma economia baseada no ouro. Mas, quando Alphonsus de Guimaraens viveu nessas cidades, elas já eram absolutamente afastadas do que se pode considerar o centro cultural e econômico do Brasil. Não à toa, apesar de sua fama nos círculos simbolistas, Alphonsus fora apelidado de "o solitário de Mariana". E ele mesmo, em carta a Mário de Alencar, confessou a solidão: "só, completamente só, nesses míseros sertões mineiros!". Minas, àquele momento, ao mesmo tempo que esbanjava um misticismo intenso, uma riqueza passada - tudo em torno das magníficas igrejas da região -, esbanjava também decadência e esquecimento. Mas um aspecto não podemos negar também no local: os crepúsculos profundíssimos e vagarosos (já havia comentado dessa condição física em outro post, sobre o também simbolista e mineiro Edgar Mata - clique aqui para acessá-lo) - ou seja, Minas, não obstante o seu afastamento, era o ambiente propício para a mais pura percepção desse sol-pôr das coisas. 

E, enfim, diante dessa pequena exposição, creio que consegui mostrar alguns aspectos desse culto à beleza não somente do ocaso, mas da finitude (que, como explicado no início desta postagem, é uma percepção que aumenta de acordo com o seu tempo) e, consequentemente, do mistério que essa transfiguração nos impõe.

Abraços,
Cardoso Tardelli






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