sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Um Interessante Relato sobre o Simbolismo Gaúcho

Caros leitores do Sacrário das Plangências, nesta postagem transcreverei um interessante relato sobre o grupo principal do Simbolismo Gaúcho, formado por Eduardo Guimaraens, Filipe d'Oliveira, José Picorelli, Homero Prates e Álvaro Moreyra. Sabe-se que o movimento, no Rio Grande do Sul, teve o seu auge tardiamente, se comparado com as outras regiões do Brasil, principalmente com o Paraná e Rio de Janeiro. Para efeito de confrontação, um ano depois do nascimento de Eduardo Guimaraens (1892), Cruz e Sousa lançava Missal e Broqueis, livros que, de certa forma, dariam o essencial passo para o Simbolismo no Brasil. 

(Na foto: Álvaro Moreyra)
O relato, presente no volume II do Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, de Andrade Muricy, é de uma preciosa importância no que se refere ao aspecto cotidiano, criativo e sugestivo desses poetas, dos quais somente Felipe e Eduardo conseguiram fincar um espaço na eternidade de nossas letras. Muricy transcreveu a narrativa de Álvaro Moreyra, conhecido cronista gaúcho, e que, como poeta, foi um legítimo simbolista de sua região, precedendo algumas "novidades" estéticas que se vulgarizariam após 1922. O texto, é evidente, tem como alicerce a imagem de José Picorelli, mas não nos foge o que é mais claro: a vivência cultural daquele grupo simbolista.

"Uma noite estávamos tristes e trágicos. Começou a chover. Calamos. A chuva pertencia à nossa religião. Filipe d'Oliveira abriu outra garrafa de Madeira R. Homero; Prates acendeu o último cigarro do quinto maço. Eu acendi o primeiro do sexto no cigarro de Homero. Picorelli fixava os olhos no chão. - Bebe, Picorelli. Não se mexeu.  - Não queres fumar, Picorelli? - Silêncio. - Que é que você tem? - Continuou mudo, imóvel. Gritamos: - Picorelli!!! - Então ele murmurou, sem levantar a cabeça: - E as mãos das mulheres que morreram sem pecar, e foram enterradas hoje? É a primeira noite debaixo da terra... A chuva vai molhar as mãos... - Ninguém "viu" mais nada... Picorelli tinha a especialidade dessas sugestões. Magro, inquieto, misterioso, não vinha nunca durante as horas claras, chegava sempre da escuridão, dos lados do mar. Chegava como quem vinha descobrir alguma coisa, súbito... Outra noite, Filipe, sozinho, lia em voz alta a tradução que concluíra das primeiras páginas de Assim falou Zaratustra. Picorelli surgiu, deteve-se. Filipe, sem dar por ele, declamava entusiasmado: "... Zaratustra falou assim ao seu coração: - Será possível? Esse velho santo, na floresta, ainda não ouviu dizer que Deus morreu!" - Picorelli, que se lembrava do enterro enorme do Barão do Rio Branco, exclamou: - Deus morreu! Que enterro, hem! Eduardo Guimaraens, distante, na cidade natal, comparecia muito à nossa casa, em saudade. Certa madrugada, Filipe, com uma enxaqueca terrível, foi-se deitar. Picorelli, que sabia de cor todas as mãos, suspirou um verso de Eduardo:

Quando virás pousar as mãos brancas e frias...

Resolvemos os três fazer um soneto que principiasse pelo verso de Eduardo. Saiu esta mistura de quatro "Simbolistas" jovens - ótimo documento da poesia de 1914:

Quando virás pousar as mãos brancas e frias
nas minhas mãos de sonho, onde a quimera dorme?...
Dói-me o perfume cruel de anéis sem pedrarias,
mal surges, rosa à boca, entre a penumbra informe...

Já todo o seu tesouro ideal e multiforme
o meu amor depôs nas tuas mãos vazias...
- Dante sem lírio olhando o íntimo inferno enorme
que o tempo povoou de espectros e agonias.

Sinto-te longe, a andar sobre rosas morrentes,
Nossa Senhora dos jardins sempre fechados,
que hás de em maio florir os meus canteiros doentes...

Um luar de outono triste erra nas fontes mortas...
As estátuas na sombra erguem vultos parados...
Quando, de azul, porás a rosa branca às portas?..."


Sobre o poema de Eduardo Guimaraens, que, no final das contas, tornou-se o maior poeta de todos os citados (apesar de Filipe d'Oliveira ter lançado, tanto no Simbolismo quanto no Modernismo, obras que o fazem ser um poeta definitivo), eis um trecho:

PARTE I - CANTO III (Na Divina Quimera) - Eduardo Guimaraens

(...)

Junto às grades hostis que os jardins enclausuram
e que, ao fulgor da luz, são de ouro, bronze ou prata,
descanso, muita vez, as mãos longas e frias.
E enquanto a lua evoca extáticos cenários
de paisagens do pólo e torna em verde brando
todo o azul que lhe nimba a tristeza celeste,
das grades através, como através de um sonho
de prisioneiro, a cujo olhar de transfiguram
as visões do exterior, tenho a visão exata
da noite que convida às grandes nostalgias.

Eu sou o doce irmão dos jardins solitários,
que lhes conhece a dor, que os vê da sombra, olhando
pelo ermo e triste e verde olhar de algum cipreste...
Uns são feitos de tudo, enfim, que há no meu sonho.
E é por isso, talvez, que ora ardem e fulguram,
ora são tristes como esses vitrais de prata
onde Cristo ergue a Deus as mãos longas e frias.
Eu sou o doce irmão dos jardins solitários,
desses jardins que exalto, amo e celebro, quando
por horas mortas vou, do amor que me reveste
de amargura, fugindo, ao longo do meu sonho.

E, ao longo do meu sonho, os jardins se enclausuram
de lágrimas! (Ah! Sobre essas grades de prata
quando virás pousas as mãos longas e frias?
Quando abrirás, sorrindo, os jardins solitários,
tu que hás de amar-me um dia, e que eu espero? Quando?)


Como citado, a vivência cultural do grupo - que foi um dos mais relevantes do Simbolismo brasileiro - soa-nos, hoje, até como fantástica, pois a base do movimento era, acima de tudo, imagética, sugestiva, "triste e trágica" - acima de tudo, atemporal -, muito além do simples positivismo e do descritivismo distante que era praticado na época - mas também evidentemente superior à teimosa artificialidade objetivista praticada hoje.

Abraços,
Cardoso Tardelli

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